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1.1.24

Tal como rios

Isadora Garcia


Com a chuva vem a força de mais água

Com a seca, a perseverança do que resta

Um rio constrói seu curso

Suas águas seguem

O trajeto conhecido

Até uma árvore cair

E tudo mudar.

Um rio não para

Um rio se adapta

Contorna grandes imprevistos

Submerge pequenos obstáculos

E segue.

24.1.23

O mundo pela fresta

 Isadora Garcia


Como vim parar aqui?

Logo eu que arranquei a porta

Logo eu que busquei o sol

Que suportei a luz queimando

Que abracei o calor sorrindo

Banhei-me em sol

Mas não foste comigo

Tua porta segue entreaberta

E é pela fresta que vives

Sol e sombra

Calor e frio

Dualidade pela fresta.

Amo o sol

Mas amo mais a ti.

Te puxo pra lá

Me puxas pra cá

E ficamos na fresta.

6.8.17

Em busca do nada

Isadora Garcia

Perseguir um sonho

até que ele se perca

e a angústia de encontrá-lo

se torne a nova perseguição.

17.11.14

Casamento moderno

Isadora Garcia

Os convidados se aproximavam da Igreja de cabeças baixas, teclando freneticamente e correndo os olhos de um lado a outro da telinha. Erguiam suas cabeças num movimento quase sincronizado à medida que seus pés diminuíam a distância para os grandes degraus de pedra.
Ao cruzarem os belíssimos batentes e adentrarem o amplo salão, dirigiam-se aos bancos compridos de madeira escura, a luz dos aparelhos celulares a iluminar seus rostos. Sentavam-se e, num ritual ensaiado, digitavam seus números de telefone no painel eletrônico nas costas dos bancos.
A Igreja enchia rapidamente e já se via o padre no centro do altar. Assim que todos se acomodaram e ergueram seus olhares, o pequeno ajudante, sobrinho da noiva, ergueu um controle remoto e, com o peito inflado tamanho era o orgulho de desempenhar tal papel, coordenou a descida de um grande telão sobre o altar.
                Com um sorriso bondoso, o padre recebeu do menino o controle e deu seguimento ao ritual, pressionando o botão que ligou o telão ornamentado de um ouro brilhante. No centro da tela, um único item bastante familiar indicava a todos a presença de Wi-fi no ambiente. Os que haviam guardado os celulares nos bolsos os retiraram novamente.
                Mais um clique no botão e o padre revelou o nome da rede, Deus_é_10, e a senha que todos deveriam digitar para ter acesso: Amém. O som de alguns teclados ecoou por um instante no interior da Igreja.
                O pequeno ajudante estendeu ao padre um tablet, permitindo que ele acessasse o Whatsapp e abrisse a conversa Casamento Fabiana e Rodrigo. Os contatos de todos os presentes já se encontravam no grupo, graças à eficiência do sistema eletrônico configurado pelo Prefeito, presente dado na inauguração do Programa Fiéis em Rede.
                Com o noivo devidamente posicionado à sua esquerda, o padre deu início à cerimônia, enviando um áudio ao grupo. Todos imediatamente pressionaram seus aparelhos aos ouvidos e olharam para a porta da Igreja. Com a marcha nupcial em suas cabeças, observaram a noiva sorridente dar os passos em direção ao altar.
                Algumas crianças bocejavam, outras sacodiam as pernas penduradas nos bancos, já inquietas. Parentes menos próximos conferiam outras conversas no aplicativo enquanto aquele instante eterno não se encerrava.
                Um de frente para o outro, o casal sorriu enamorado. Rodrigo enviou um emoticon apaixonado ao grupo e arrancou suspiros de algumas moças: era um rapaz sensível. Sua dedicação em responder as mensagens de Fabiana com rapidez foi um dos motivos que manteve o casal junto por todos aqueles sete meses.
                A cerimônia decorreu sem grandes problemas, o sim dos noivos acompanhado de várias exclamações demonstrando o entusiasmo que os preenchia naquele momento. O padre anunciou, enfim, o casamento dos jovens, que se beijaram após trocarem corações e emoticons apaixonados.
                Os mais emotivos choravam, os mais entusiasmados mandavam alegres parabéns em áudio para o grupo. Os noivos saíram da Igreja de mãos dadas sob a chuva de arroz e palmas. Tradições bobas, sabe como é.
                O carro arrancou levando os recém-casados para a comemoração do dia mais esperado de suas agendas e os convidados mais lentos eram olhados com raiva pelos que chegavam e digitavam seus números para serem adicionados no grupo Batizado da Aninha.


26.3.14

Pacífica

Isadora Garcia

A dor passa,
A arte fica.
Pacifica.

13.1.14

Today I met someone

Isadora Garcia

Today I met someone so... strange.
I have met someone
And she was so… different,
She was so different from me,
She was… interesting.
Today I just met someone
suddenly…
Today I suddenly met someone
Someone I think I know
Someone I think I knew
Someone strange
A stranger.
Today I met a stranger
A Stranger to me…
Today I met someone
And I think it was
Myself.

27.12.13

Descasca-te

Isadora Garcia

A vida se esconde embaixo de tudo.
A superfície não basta,
Só visão embaça,
Vivemos na massa
E a massa maçante envolve a vida numa casca
Casca grossa, dura, impenetrável.
Será?
Não.
Impenetrável superfície,
Mas meus olhos vão além,
Eles têm que ir.
Olhos cansados, amassados, emassados,
esses olhos não veem,
Mas os meus vão além,
veem abaixo,
perpassam a casca,
descascam a vida,
descascam-se,
descasco-me.
E vivo.

A vida se esconde embaixo de tudo.
Na superfície tudo boia.
Prefiro afundar,
Navegar pelos mares da vida-marinha,
da vida-escondida,
da vida-...
...-perdida?
Não.
Nela me acho,
Nela me sinto,
Nela sou.
E só nela.
Eu sou nela.
Aqui em cima,
Bem...
Aqui em cima represento.
Espetáculo oco sob(re) a vida
enclausurada
na casca.
Poucos sabem descascar.

Viver é

Isadora Garcia

O que é viver?
Viver é conseguir?
Viver é persistir?
Viver é desistir?
Viver é conseguir sem persistir?
Viver é persistir sem desistir?
Viver é desistir sem conseguir?
Viver é conseguir sem desistir?
Viver é desistir sem persistir?
Viver é persistir sem conseguir?
Viver é tudo.
Viver é nada.
Viver é tudo ou nada.
Viver é.
E o que é?
Eu sou?
E o que sou?
Eu sou vida.
Eu sou tudo.
Eu sou nada.
Eu sou tudo ou nada.
E a vida?
Passou.

21.10.12

Olha e vê!

Isadora Garcia

Era uma vez uma menina bem pequenininha. Bem verdade era que as responsabilidades que levava nas costas não condiziam com o tamanho da pobre menina. "Já és grande o suficiente!", diziam a ela, "já está mais do que na hora de caminhares com tuas próprias pernas, oras!". Mas não era assim que a menina se via. Para ela, suas mãos ainda não suportavam o árduo trabalho, seus pés logo se cansavam de sustentar o peso de toda sua obrigação. Olhava-se no espelho e via refletido em seus olhos castanhos o medo. Como tinha medo essa menina! Medo de quê? Medo do futuro, mas é claro! Ah, o futuro... Há algo mais amedrontador do que aquilo que esta palavra resume? O incerto, o obscuro, o duvidoso... Sim, era o futuro que figurava nos pesadelos da menina. E assim ela foi vivendo, ela foi dando conta daquilo que dela era exigido. Mas mal percebia, a menina, que caminhava a passos largos em direção ao seu temido futuro. E seu caminho fora ficando mais claro, mais iluminado, mais povoado, também. De repente, ela, que pensou que o caminho para o futuro devesse ser percorrido a sós, percebeu-se rodeada de companhias, que, num falatório animado, distraiam-na dos obstáculos, alertavam-na para os perigos. Contente, a menina já pouco se lembrava de seus medos. Era como se eles estivessem adormecidos, esquecidos embaixo de pesados cobertores. Já não era mais uma menina. Crescera. Verdade era que as feições juvenis ainda eram muito presentes, mas a mente (ah, a mente!) já estava muito mudada, muito amadurecida, muito vivida, se é que é permitido assim dizer de alguém de 19 anos. Sim, creio que assim seja possível afirmar, pois é isto que a menina via, mas não só isso. Num dado momento da caminhada, ela fora surpreendida pela presença de um enorme espelho. Em sua bela e delicada moldura, estava escrito simplesmente: "olha e vê". E foi isso que ela fez. Neste momento, a menina se viu, a menina se percebeu. Logo lágrimas encheram seus olhos e obscureceram sua visão. E quanto menos enxergava, mais era a menina capaz de se ver! E que visão incrível! Como pudera o tempo, a correria do caminhar e as distrações da jornada lhe tornarem tão alheia a si mesma? A menina se via e chorava, emocionada. Tudo o que ela mais queria estava se tornando realidade! Ela estava vendo em si mesma a realização de uma antiga promessa, algo que se propôs, timidamente, a realizar anos antes, mas que nunca chegara a verdadeiramente acreditar que poderia vir a se concretizar. E lá estava ela. Real. Forte. Capaz. Esta visão foi talvez o marco mais importante da vida da menina. Foi a partir deste momento que ela começou a confiar em si mesma. E quando confiamos em nós mesmos, não há fronteiras que limitem até onde poderemos chegar!

4.8.12

Privação ideológica*


Isadora Garcia

Violentamente, puxaram meus pés de volta ao chão, amarraram minhas asas e vendaram-me os olhos. Estava voando muito alto, diziam. Alcançando ideias perigosas, justificavam. Tolos! Vendas nunca serão negras o suficiente, nem cordas serão fortes o bastante para findar os sonhos e cantos de minha alma.


*Adaptação de Sonhar é permitido? para um concurso de mini-contos.

O mar da vida


Isadora Garcia

O barco de minha vida navega por mares de incerteza.
Mas sob tais mares, correm águas de sonhos,
Correm desejos e vontades, corre o canto de minha alma.
Me pego a refletir sobre o verdadeiro norteador da jornada:
Serão as preocupações ou as paixões? Medo ou anseio?
Creio que não caiba a mim a descoberta,
Creio que meu roteiro não preveja a elucidação
Daquilo que seria o maior enigma da vida,
Daquilo que, de fato, nos move e nos orienta:
Nossas dúvidas, nossas escolhas, nosso caminho.

21.6.12

Sonhar é permitido, dizem os jornais

Isadora Garcia

-Sonhar é permitido, está nos jornais! E, olha só! Agora também está liberado viver para realizar seus sonhos!

-Será?! Não acredito! Não é possível!

-Pois acredite, rapaz! Foi decretado, virou lei!

-Mas... Logo eu que... Foram tantos anos tentando enterrar meus sonhos, tentando ignorar seus chamados... - Pausa - E se estiverem mortos?!?!

-Pois trate de reanimá-los, meu caro, ou morrerás tu!

31.5.12

Sonhar é permitido?


Isadora Garcia 

Descobri a magia e o poder das palavras aos poucos. O mistério que as envolve foi me fascinando de tal forma, que não pude ignorá-lo. Ele tornou-se autor de meus sonhos e me incentivou a buscar na beleza das letras a possibilidade de externar sentimentos, fantasias e desejos. A descoberta desta possibilidade infinita de provar tão doce sabor me encantou e, leve e sorridente, dei asas a sonhos que me levaram (e ainda levam!) para mundos fantásticos. A coisa foi tomando dimensões que, a meus olhos, eram magníficas, mas, na ótica da fria realidade, eram preocupantes. Foi então que começaram a puxar meus pés de volta para o chão, a me impor vendas e cordas, a cortar minhas asas, que cultivava com tanto orgulho. Que dor! Que horror! Aquilo me doeu, como me doeu! Mas as vendas não eram negras o suficiente e as cordas não tinham a força requerida para parar os cantos de minha alma. Durou pouco o tempo em que aceitei esta prisão. Logo minhas asas já estavam novamente fortalecidas e foi então que dei o maior salto de todos! Ah, que maravilha o vento a me tocar o rosto! Era incrível a leveza depois da privação! Hoje cultivo meus sonhos e meu imaginário, confiante. Muitas vezes ainda sinto a queimação das cordas em meus pés, tentando me prender a um mundo de limitações, mas logo vêm as palavras a me abrir os olhos, a levantar meu rosto e me apontar o céu, moradia eterna da alma que acredita.

25.2.12

As vozes do conhecimento

Por: Isadora Garcia

Era uma vez um menino muito curioso. Ele queria saber sobre tudo, perguntava aos adultos sem parar. Andava com os olhos bem abertos, atento ao mundo que o cercava. Mas à medida que foi crescendo, foi ficando triste. Tudo o que sabia, pensava, fora ensinado a ele por outros. Seu conhecimento nunca seria a priori, sempre haveria intervenção dos que o cercavam. Ele parou de perguntar, parou de ler, passou a tentar descobrir as coisas por si mesmo, apenas com o uso de seus sentidos e de seu pensamento. Gostava de analisar o comportamento da natureza, pois, para ele, ali não haveria intervenção humana, ele poderia compreender o que quisesse da maneira que julgava mais pura.

Com o tempo, porém, este isolamento da sociedade foi lhe deixando solitário, melancólico e ele passou se sentir inútil. Sua família, depois de muito tentar trazê-lo de volta ao convívio social, desistiu, acreditando que ele havia enlouquecido e que negaria para sempre qualquer ajuda. As maravilhas da natureza não mais o fascinavam, nem mesmo o movimento das nuvens, que tanto gostava de observar. Já era um homem e aquele sentimento de que o mundo desfilava na frente de seus olhos para ser por ele descoberto morria cada dia mais. Não havia mais a necessidade de buscar conhecimento, pois percebera que o conhecimento preso em seu corpo não servia de nada. Foi então que lhe ocorreu uma ideia maravilhosa! Era isso! Havia desperdiçado grande parte de sua vida atrás de algo que não era o que de fato lhe satisfaria! Mas agora ele sabia o que tinha de ser feito e a felicidade uma vez mais irradiava de seus olhos.

Voltou correndo para a vila onde morava, sorrindo a todos. Olha, o moribundo doido voltou, diziam os que o viam passar. Sua família chorou emocionada com o reencontro. O que o fez voltar, meu filho? Perguntou a velha. Mãe, descobri! Eu descobri, mãe! Dizia sem conter o entusiasmo. Descobriu o que, meu filho? O que tanto procurava que demorou esses anos todos para encontrar lá sozinho? O temor de que a loucura não houvesse ido embora ainda a atormentava. Descobri meu papel no mundo, mãe, para que sirvo! A resposta não foi muito bem compreendida pela velha, mas ao ver seu filho tão feliz, não pode deixar de comemorar. Fico feliz por você, meu anjo, muito feliz na verdade! Disse abraçando-o.

Os anos passaram e o que fora uma vez o menino mais curioso da cidade tornara-se o mais sábio dos professores. Transmitir seu conhecimento era o que mais o agradava. Reunia-se todos os dias com pequenas crianças ansiosas pelas histórias do bom professor. As aulas eram viagens pelo mundo. Pelas palavras do mestre, as crianças eram capazes de viver o que muitos adultos da vila foram incapazes de experimentar. Os pais ficavam felizes ao ver seus filhos tão entusiasmados para irem às reuniões, o que as tornou, com o tempo, cada vez mais cheias.

O professor percebera que o conhecimento não é corrompido quando é trazido por outra pessoa. Pelo contrário, ele é enriquecido! Aquilo que descobrimos por nós mesmos, ao ser passado a outro, será interpretado de forma diferente, o que dá início a uma constante renovação. Muitas vozes estão contidas nos conhecimentos que cada sociedade cultiva e, quanto mais vozes formos capazes de acumular, mais rico será esse conhecimento.

10.12.11

II - O Meu Olhar

Alberto Caeiro

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

em "O Guardador de Rebanhos", 8-3-1914

‎"A coisa não está nem na partida nem na chegada, mas na travessia" Guimarães Rosa

6.9.11

Gaiolas e asas – Rubem Alves

Os pensamentos me chegam de forma inesperada, sob a forma de aforismos. Fico feliz porque sei que Lichtenberg, William Blake e Nietzsche frequentemente eram também atacados por eles. Digo “atacados“ porque eles surgem repentinamente, sem preparo, com a força de um raio. Aforismos são visões: fazem ver, sem explicar. Pois ontem, de repente, esse aforismo me atacou: “Há escolas que são gaiolas. Há escolas que são asas“

Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do vôo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o vôo.

Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são os pássaros em vôo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o vôo, isso elas não podem fazer, porque o vôo já nasce dentro dos pássaros. O vôo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado.

Esse simples aforismo nasceu de um sofrimento: sofri conversando com professoras de segundo grau, em escolas de periferia. O que elas contam são relatos de horror e medo. Balbúrdia, gritaria, desrespeito, ofensas, ameaças... E elas, timidamente, pedindo silêncio, tentando fazer as coisas que a burocracia determina que sejam feitas, dar o programa, fazer avaliações... Ouvindo os seus relatos vi uma jaula cheia de tigres famintos, dentes arreganhados, garras à mostra - e a domadoras com seus chicotes, fazendo ameaças fracas demais para a força dos tigres... Sentir alegria ao sair da casa para ir para escola? Ter prazer em ensinar? Amar os alunos? O seu sonho é livrar-se de tudo aquilo. Mas não podem. A porta de ferro que fecha os tigres é a mesma porta que as fecha junto com os tigres.

Nos tempos da minha infância eu tinha um prazer cruel: pegar passarinhos. Fazia minhas próprias arapucas, punha fubá dentro e ficava escondido, esperando... O pobre passarinho vinha, atraído pelo fubá. Ia comendo, entrava na arapuca, pisava no poleiro – e era uma vez um passarinho voante. Cuidadosamente eu enfiava a mão na arapuca, pegava o passarinho e o colocava dentro de uma gaiola. O pássaro se lançava furiosamente contra os arames, batia as asas, crispava as garras, enfiava o bico entre nos vãos, na inútil tentativa de ganhar de novo o espaço, ficava ensanguetado... Sempre me lembro com tristeza da minha crueldade infantil.

Violento, o pássaro que luta contra os arames da gaiola? Ou violenta será a imóvel gaiola que o prende? Violentos, os adolescentes de periferia? Ou serão as escolas que são violentas? As escolas serão gaiolas?

Me falarão sobre a necessidade das escolas dizendo que os adolescentes de periferia precisam ser educados para melhorarem de vida. De acordo. É preciso que os adolescentes, é preciso que todos tenham uma boa educação. Uma boa educação abre os caminhos de uma vida melhor.

Mas, eu pergunto: Nossas escolas estão dando uma boa educação? O que é uma boa educação?

O que os burocratas pressupõe sem pensar é que os alunos ganham uma boa educação se aprendem os conteúdos dos programas oficiais. E para se testar a qualidade da educação se criam mecanismos, provas, avaliações, acrescidos dos novos exames elaborados pelo Ministério da Educação.

Mas será mesmo? Será que a aprendizagem dos programas oficiais se identifica com o ideal de uma boa educação? Você sabe o que é “dígrafo“? E os usos da partícula “se“? E o nome das enzimas que entram na digestão? E o sujeito da frase “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas de um povo heróico o brado retumbante“? Qual a utilidade da palavra “mesóclise“? Pobres professoras, também engaioladas... São obrigadas a ensinar o que os programas mandam, sabendo que é inútil. Isso é hábito velho das escolas. Bruno Bettelheim relata sua experiência com as escolas: “fui forçado (!) a estudar o que os professores haviam decidido que eu deveria aprender – e aprender à sua maneira...“

O sujeito da educação é o corpo porque é nele que está a vida. É o corpo que quer aprender para poder viver. É ele que dá as ordens. A inteligência é um instrumento do corpo cuja função é ajudá-lo a viver. Nietzsche dizia que ela, a inteligência, era “ferramenta“ e “brinquedo“ do corpo. Nisso se resume o programa educacional do corpo: aprender “ferramentas“, aprender “brinquedos“. “Ferramentas“ são conhecimentos que nos permitem resolver os problemas vitais do dia a dia. “Brinquedos“ são todas aquelas coisas que, não tendo nenhuma utilidade como ferramentas, dão prazer e alegria à alma. No momento em que escrevo estou ouvindo o coral da 9ª sinfonia. Não é ferramenta. Não serve para nada. Mas enche a minha alma de felicidade. Nessas duas palavras, ferramentas e brinquedos, está o resumo educação.

Ferramentas e brinquedos não são gaiolas. São asas. Ferramentas me permitem voar pelos caminhos do mundo. Brinquedos me permitem voar pelos caminhos da alma. Quem está aprendendo ferramentas e brinquedos está aprendendo liberdade, não fica violento. Fica alegre, vendo as asas crescer... Assim todo professor, ao ensinar, teria que perguntar: “Isso que vou ensinar, é ferramenta? É brinquedo?“ Se não for é melhor deixar de lado.

As estatísticas oficiais anunciam o aumento das escolas e o aumento dos alunos matriculados. Esses dados não me dizem nada. Não me dizem se são gaiolas ou asas. Mas eu sei que há professores que amam o vôo dos seus alunos. Há esperança...
(Folha de S. Paulo, Tendências e debates, 05/12/2001.)

16.5.11

Instável aliança

Isadora Garcia

A insegurança
é a base que me sustenta
nessa nova fase que vivo.

Sem poder confiar em
minhas próprias escolhas,
Sofro a inquietude de pernas bambas
que insistem em me guiar rumo ao futuro.

A dificuldade da travessia,
A incerteza que me rege,
O vai e vêm de inquietos
pensamentos conturbados...

Almejo o dia em que em mim encontrarei
as respostas de minhas dúvidas constantes.
Quando a busca por certezas chegará ao fim?
Ou será a vida sempre esta angustiante luta?

A insegurança
é a base que me sustenta
nessa nova fase que vivo.

...pelo menos tenho uma companhia
eternamente a me reerguer.

3.2.11

Sentimento essencial

Isadora Garcia

Impossível provar teu sabor
Sem, na despedida, sofrer a dor
E, na expectativa, reinar o temor
De nunca mais sentir teu calor.

Mesmo sabendo ser tu das loucuras autor,
Não posso meus dias sem ti compor,
Pois a falta de teus frutos me leva ao torpor,
Destrói da vida o sentido, me traz o rancor.

Por isso te peço: devolva-me o fulgor.
Ouça o pedido que faço com ardor,
Traga de volta aos meus dias a cor.

Se pedir, sou tua sem me impor,
Da tua condição aceito o valor,
Mas volte ao meu peito, amor.

29.12.10

Expectativas de um novo ano

Isadora Garcia

Momentos que passaram
Não podemos fazer voltar
Mas aqueles que ainda vêm
Podemos modificar

Esqueçamos as tristezas
Enterremos o arrependimento
Com um novo suspiro
Comecemos um novo tempo

Forças hemos de ter
Em uma nova era
Temos que crer

O novo há de ser
O melhor que
Iremos viver